quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Twitter e o Não Ter


Através do meu twitter @Lisi_Alves, acompanho notícias, artigos, jurisprudência, pensamentos e sentimentos alheios. Sigo pessoas inteligentes e interessantes, autoridades públicas, juízes, delegados, defensores, juristas etc. Sigo, também, pessoas desconhecidas de todas as idades e fico analisando a vida de quem tudo tem: saúde, liberdade, família, amor, amigos, contatos profissionais, computador, informação, internet, twitter e facebook. Esses, além de terem muita gente por eles, têm também essas maravilhosas ferramentas da rede social para protestarem contra concessionárias de automóveis, fabricantes de geladeiras, lojas em geral. Não é raro, inclusive, resolverem suas relações consumeiristas após reiteradas reclamações no twitter.  É possível observar pessoas desprovidas de conteúdo, com acesso fácil a tudo que o dinheiro pode patrocinar e que em nada se assemelham à realidade dos meus assistidos, pessoas desvalidas que não têm alimentação, saúde, liberdade, família, muito menos informação, computador, internet, twitter.
Para cada um a vida revela um punhado de desgraça sem a possibilidade de um futuro promissor. Na fila da Defensoria Pública, percebe-se que são irremediáveis as mazelas e infortúnios vividos. Pessoas que estão ali sem nossos bens mais preciosos. A cada liminar para obtenção de medicamentos indeferida na área cível, uma vida desperdiçada. A cada liminar indeferida na área penal, uma liberdade perdida. Pessoas que sofrem abusos físicos e emocionais de toda ordem, pessoas que não têm a quem reclamar a não ser para um Defensor Público que, acima de tudo, representa o acesso à solução de suas vidas.
Atender aos mais necessitados é virtude a transbordar do espírito e do coração, das profundezas da alma, da altivez do caráter, das convicções inamovíveis, do senso de honra, do sentimento de justiça, da fé na verdade e na esperança no bem. O que nos motiva no labor diário é a imensa piedade pela dor humana, pela pobre condição do homem peregrino, ferido de agonia, pois o nosso direito não é o direito para os poucos que têm, é o direito para que todos possuam. Sejamos, pois, seres sensíveis capazes de nos apaixonarmos pelas causas dos desamparados a operacionalizar ferramentas para prestar assistência a pessoas humildes que convivem com as misérias de pão e de caráter, transvios abertos nas infâncias sem afeto.

domingo, 15 de maio de 2011

Inovações introduzidas pela Lei nº 12.403 e uma breve reflexão da tragédia social gerada pela prisão preventiva simultânea de pai e mãe

Com a sanção da nova Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, percebe-se que há muito a ser estudado e comentado, especialmente, no que se refere à possibilidade de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar.

Especial atenção deve merecer um inciso que vai provocar polêmica, no dia a dia dos militantes do direito, em especial quando o público-alvo se constitui, preponderantemente, de acusados desprovidos de recursos financeiros, oriundos de famílias emocional e socialmente desestruturadas.

Trata-se da norma contida no inciso III do artigo 318 do Código de Processo Penal que permite a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar quando o agente for “– imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência”.

Sob a ótica familiar, cediças a gravidade dos danos e a tragédia social ocasionadas pela prisão preventiva conjunta de pais e mães, deixando desamparadas crianças inocentes que são encaminhadas para os denominados abrigos.

Cita-se a “Operação Poeta” da Polícia Federal, deflagrada em outubro de 2008, em Porto Alegre que, além de outras circunstâncias, apurou envolvimento de um jovem casal com tráfico ilícito de entorpecentes,  cujo filho, de tenra idade, possuía severa deficiência mental.  Segundo o relatório da autoridade policial, a prisão do marido e a soltura da esposa teria sido “negociada” por um advogado, dentro de uma delegacia local, pelo valor de R$ 6.000,00, já que a mãe era quem cuidava do menor.

Inexoravelmente, o caso em concreto nos remete a uma reflexão: se pai e mãe são presos provisoriamente, qual critério a ser utilizado para substituir a segregação preventiva pela domiciliar a um deles, nos moldes do mencionado inciso? Quem é mais importante para a criança de até seis anos de idade, pai ou mãe?

Segundo especialistas, o nascimento de um bebê constitui o primeiro trauma da criança, pois até então não necessitava de qualquer esforço para respirar e alimentar-se, sendo, dentre todos os mamíferos, o que vem ao mundo mais desamparado e desprotegido, e o que durante mais tempo exige cuidados para sobreviver. Além desse extremo desamparo biológico, ato contínuo, depara o bebê com a mais sagrada das ansiedades, ao reconhecer-se humano nos olhos do amor materno. Mencionado reconhecimento nos remete ao próximo estágio, a vinculação. Em um primeiro momento, a criança é a extensão do ser significativo (a mãe), pois, até próximo dos dois anos, o bebê ainda não se reconhece como ser único, singular e, sim, uma extensão da mãe (simbiose maternofilial).

Reconhecer-se como um ser singular, portanto, significa nosso segundo momento de trauma de separação, porém, necessário para a construção de um ser individual, mas ainda dependente e vinculado à mãe, inclusive pela amamentação. Ressalte-se que o vínculo e o trabalho de construção da autonomia poderão ensejar um indivíduo seguro e independente.

Paradoxalmente, em razão da vulnerabilidade da criança, esse trabalho psíquico necessita do amor e da proteção materna, razão pela qual toda e qualquer separação dinamita esse processo, sendo extremamente danoso à construção da subjetividade. Há que se ressaltar, ainda, que, durante esse processo, a criança faz registros emocionais de tudo o que vivencia, e a prisão da mãe seria um inesperado e anormal terceiro momento de trauma de separação.

Afinal, pior do que a chaga social das creches dentro de penitenciárias, criadas em prol do bem-estar dos infantes, inserindo-os em um ambiente prisional e imprimindo, no seu inconsciente, esta experiência que lhes será familiar, é  remetê-los para instituições totais, sendo, abruptamente, separados de ambos os pais.

As primeiras relações são o alicerce que fundam o modo de funcionamento psíquico daquele ser, pois formam uma verdadeira matriz inconsciente, que será, posteriormente, reeditada nas relações afetivas futuras da vida adulta (síndrome do amor negativo). Por isso, relações doentias e insatisfatórias, nos primeiros anos de vida, podem estar relacionadas com dificuldades psicológicas posteriores.

A relação binária pré-edipiana, em que a criança lida apenas com um alter ego (mãe), evolui, posteriormente, para o momento do complexo de Édipo, surgindo a figura do pai como intruso e vilão, intervindo na relação e introduzindo a ordem, instaurando a lei pela proibição do incesto.*

Portanto, ao optar pela concessão da prisão domiciliar à genitora, nesta árdua, desgastante e espinhosa decisão, por outro lado, manterá o magistrado o pai preso, sendo que a figura paterna é a responsável pela inserção, na criança, dos contensores internos, o superego, formando um ser com limites sociais, principalmente, durante a primeira infância, ou seja, antes dos sete anos de idade (idade, aliás, que havia sido objeto do projeto de lei na sua fase inicial).

Assim, pelo aspecto biológico, a função do pai, como representante da lei, assume uma dimensão substancial dentro do lar na formação do superego.

Para Freud, com efeito, o superego é o herdeiro do complexo de Édipo, pois só se estabelece após a libertação, por parte do indivíduo, desse complexo. Portanto, tem a missão de reprimir o complexo de Édipo, exercendo o papel semelhante ao de um policial ou juiz em relação às exigências do ego, funcionando como consciência moral .*

Assim, a ausência e privação da figura paterna, como modelo de identificação e diferenciação mental, interrompendo a relação diádica com a mãe, e fundando a noção de lei, reforça os sentimentos de triunfo, de poder e total ausência de limites sociais.*

Dessa forma, uma relação triangular rompida pela prisão do pai irá prejudicar a vigência da lei dentro do lar, já que vai mascarar a sua transgressão, rachando a dinâmica da culpa.*

Obviamente, mais graves são os casos de crianças que vão para abrigos em razão da prisão preventiva de pai e mãe, sendo afastadas, abruptamente, da função paterna e materna. Já crianças que permanecem no seio familiar serão menos atingidas, pois a função pode ser exercida por qualquer um, não sendo somente prerrogativa de pais e mães biológicos.

Paradoxalmente, a prisão preventiva do pai pelo cumprimento da letra fria da lei, retira o seu próprio representante psicológico de dentro do seio familiar. Nossas cadeias estão lotadas, a sociedade prende, indiscriminadamente, impedindo a formação correta do superego nos filhos dos presos. Mais tarde, na época em que a própria sociedade e o superego deveriam assumir o lugar dos pais dessas crianças, impedindo-os de delinquir na fase adulta, encontra seres aleijados emocionalmente. Portanto, em um círculo vicioso sem fim, persiste a comunidade em geral em exigir a construção de mais presídios com a finalidade de prender “monstros” que ela mesma cria. 

Tais reflexões nos remetem ao questionamento que, necessariamente, deveria ser feito, especialmente, quando a segregação utiliza, não raras vezes, de forma indiscriminada, o argumento genérico da “garantia da ordem pública”, acerca dos efeitos maléficos de tal medida.

Aliás, infelizmente, quanto às hipóteses permissivas da decretação, nada mudou. Segue, portanto, possível a decretação de prisão cautelar com base na genérica “garantia da ordem pública” em que pese a redação original do projeto de lei.

O texto do artigo 312 NÃO aprovado era o seguinte:

“A prisão preventiva poderá ser decretada quando verificados a existência de crime e indícios suficientes de autoria e ocorrerem fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa.”

   Cotejando-se o texto NÃO aprovado com a sua redação final, percebe-se que a proposta inicial continha a conjunção "e" que é uma conjunção aditiva, transmitindo a idéia de soma: existência de crime + indícios suficientes de autoria + fundadas razões de que o indiciado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa.

Portanto, uma lástima a redação NÃO TER SIDO APROVADA, pois estaríamos conduzindo, verdadeiramente, nosso labor, como operadores do direito, ao encontro da verdadeira ordem pública.

Como a redação foi modificada, o diferencial da lei aprovada e sancionada, portanto, restringe-se às medidas cautelares alternativas à prisão, listadas nos artigos 317 e 319 e à possibilidade de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar.

Destaca-se, pois, o inciso III do artigo 318 como a parte mais humanizadora a ser comemorada por quem ainda acredita na possibilidade de um direito penal de garantias, pois, de uma forma objetiva, procura realmente atender ao princípio da personalidade, restabelecendo a paz social. Acredito que ainda não seja a solução do problema, pois, talvez, não esteja ela nas cautelares alternativas, nas alternativas ao castigo, mas, sim, em não fabricar castigados.

*TRINDADE, JORGE. Delinquência Juvenil - Uma abordagem transdisciplinar, Livraria do Advogado, 2ª Edição, 1996